Há cerca de uma década, com o avanço exponencial das redes sociais e o contexto político cada vez mais acirrado e polarizado globalmente, o mundo se fechou em bolhas. Incentivados pelos algoritmos, que nos mostram apenas aquilo que queremos ver, e pelas facilidades em ocultar e bloquear pessoas e pensamentos dissidentes, a gente passou a ter cada vez menos contato com o diferente, estreitando assim nossos pontos de vista. Falamos cada vez mais entre “iguais” e, pior: acabamos com a falsa sensação de entrar em contato com diferentes perspectivas, quando, na verdade, nem sequer fazemos escolhas. A impressão que fica é que a maioria das pessoas pensa como nós, afinal, “todos” nas nossas redes sociais estão curtindo ou cancelando as mesmas coisas que a gente.
Só que, agora, esse fenômeno vem tomando proporções tão grandes que, num dos períodos mais polarizados de nossa história contemporânea, estamos assistindo a consequências drásticas.
Uma delas, bem emblemática, ocorreu no fim de outubro, quando o rapper vencedor de 22 Grammys, estilista e uma das maiores personalidades negras da cultura pop Kanye West (que agora quer ser chamado de Ye) perdeu contratos astronômicos com a GAP, Balenciaga e Adidas – o que lhe custou também o posto de bilionário, segundo a Forbes. Tudo porque, com a certeza de que suas ideias ultraconservadoras e nada ortodoxas seriam aplaudidas pela maioria, Ye passou a dar declarações polêmicas (quando não criminosas) na imprensa e nas redes.
A queda do ídolo começou no início deste mês, quando ele foi ao desfile de sua marca em Paris usando uma camiseta com o slogan “White Lives Matter” (Vidas Brancas Importam), em referência ao movimento “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam). Entidades defensoras de direitos humanos logo associaram a frase ao lema de supremacistas brancos, o que fomenta o discurso de ódio. O ato também foi criticado pela editora colaboradora da Vogue, Gabriella Karefa-Johnson. Como resposta, Ye debochou da profissional, desqualificando seus looks e questionando a posição dela no mercado de Moda. Logo, foi acusado de misoginia.
O astro também respondeu às críticas desse episódio com comentários antissemitas em posts nas redes sociais e em entrevistas depois do desfile. Ele ainda disse que o movimento Black Lives Matter era uma farsa, e que George Floyd, homem negro assassinado pela polícia de Minneapolis em 2020, não teria morrido em decorrência de sufocamento, mas sim de uma injeção de fentanil que havia tomado horas antes. O rapper afirmou também que ninguém é mais julgado que o homem branco hétero na sociedade atualmente, entre outras declarações consideradas controversas.
O resultado? Foi banido do Instagram e do Twitter. Mas não se deu por satisfeito. Agora, quer se fechar ainda mais em sua bolha e falar apenas para os convertidos às suas perigosas ideias. Por isso, está comprando a empresa Parlement Technologies, responsável pela rede social Parle, bem popular entre o público conservador e que se denomina como “a rede social da liberdade de expressão”. A companhia informou à Reuters que a negociação deve ser concluída até o fim do ano.
E, sim: mesmo depois de colocar sua reputação e história em risco e perder milhões de dólares, West segue mantendo um séquito de defensores, que ainda o consideram um livre pensador, uma consciência elevada. Eles podem não gostar ou concordar com tudo o que ele faz, mas o aplaudem e colocam todos os tropeços do ídolo na conta do transtorno bipolar que ele admitiu ter.
O nascimento das bolhas
Segundo a pesquisa “Brasil de Bolhas”, que acaba de ser lançada pela agência de publicidade Dojo em parceria com a empresa de pesquisas Offerwise, 69% dos brasileiros têm amigos com pensamentos iguais ou muitos semelhantes aos próprios. O estudo, que ouviu 2 mil pessoas no País, entre junho e julho deste ano, constatou que as bolhas ganharam força a partir de 2013, ano de fortes manifestações de rua pelo mundo, coincidindo com o aumento das vendas de celulares – de 35 milhões de unidades para 54 milhões no ano seguinte.
Entre 2014 e 2016, o processo de desinformação nas redes sociais se intensificou – Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos em 2016, quando se popularizou o termo “fake news”. No Brasil, 42% das pessoas compartilharam informações falsas em 2016, segundo o estudo. “A desinformação nos leva a fazer julgamentos parciais que nos empurram cada vez mais aos extremos, nos afastando de diálogos produtivos”, conclui o estudo.
O fato é que ninguém mais quer ouvir ideias dissonantes. A gente só quer confirmar nossas teses pré-concebidas. Os grupos sociais passaram então a navegar em verdades simples, rasas e absolutas. Os egos acabaram inflados com as confirmações pessoais corroboradas pelo grupo – o que só se intensificou a partir de 2016, quando os debates saíram dos termos socioeconômicos e foram substituídos por temas polarizantes e de ordem moral (como armas, feminicídio, legalização das drogas, casamento LGBTI+, aborto, entre outros). E, diz a pesquisa, quando as discussões passam a ser carregadas de conteúdo moral, os pontos de vista se tornam inegociáveis e indiscutíveis, intensificando as bolhas.
E tem como furar?
A total falta de traquejo em conversar com grupos diversos é, sem dúvida, um entrave para as marcas e para a criação de conteúdo como um todo. Ainda segundo a pesquisa da Dojo, quase 30% dos brasileiros declaram que já cortaram ou cortariam relações com pessoas que pensam de forma diferente, não só politicamente. Em compensação, 72% estariam dispostos a dialogar com a ajuda de um intermediário ou influenciador.
Mas, sim, há caminhos para furar as bolhas e voltar ao diálogo, desde que as pessoas e marcas topem virar intermediárias dessas conversas. A própria pesquisa aponta alguns caminhos que vão ao encontro das recomendações que costumamos dar aos clientes aqui da Ecomunica. Aqui vale um alerta: opinião é diferente de declarações criminosas. Somos contra dar espaço a qualquer discurso que seja preconceituoso, nocivo e violento.
Uma das estratégias para melhorar o diálogo é criar pontos de conexão com o interlocutor. Assim, é importante que o porta-voz da mensagem sempre traga referências e exemplos sobre vivências e de sua vida ou da realidade daquela pessoa com quem se está conversando. Demonstrar que respeita o que o outro está sentindo e se conectar pela emoção é outro caminho viável.
As máximas do jornalismo também podem ser usadas: sempre se pautar por dados e informações de fontes confiáveis, checadas, e apresentar ao menos “dois lados” da questão.
Além do mais, é preciso criar – seja no físico ou digital – ambientes acolhedores em que as pessoas discutam ideias sem medo de ser oprimidas ou atacadas (algo muito mais provável de acontecer em espaços virtuais, diga-se). Só de pensar o que você falaria para o indivíduo se estivesse frente a frente com ele, numa localidade física, já evitamos muito ódio gratuito, não?
E, claro, vale a pena ampliar os canais de referências e buscas de informações, uma vez que as redes tendem a entregar apenas posicionamentos alinhados àquilo que a gente quer acreditar.
Mas, para isso, de forma geral, é preciso que tenhamos disposição para ouvir o diferente. Não será fácil, mas fica como um exercício para começar a aplacar os ânimos, reconstruir relações, abrir nossos olhos para uma visão de mundo mais ampla e realista e, o mais importante, fortalecer a nossa cambaleante democracia.