Afinal, onde está mesmo a diversidade na Copa do Mundo do Catar? É possível que um evento esportivo com valores de respeito e tolerância a diferentes culturas e pessoas compense violações de direitos humanos da nação anfitriã? E o que isso tem a ver com Comunicação e o universo das marcas?
Bem, as duas primeiras perguntas intrigam o planeta desde 2010, quando o Catar foi “escolhido” como sede do campeonato mundial. E a dúvida só aumentou quando o ator norte-americano Morgan Freeman participou como narrador e apresentador da cerimônia de abertura do campeonato, com discurso sobre diversidade e inclusão (corroborado pelas falas do emir catariano Tamim bin Hamad al-Thani). Para dar ainda mais força à mensagem, Freeman interagiu com o youtuber catariano e embaixador do evento Ghanim al-Muftah, ativista que nasceu sem as pernas por causa da rara síndrome de regressão caudal, má-formação que afeta o desenvolvimento da parte de baixo do corpo. “Sou bem-vindo?”, perguntou Al Muftah durante a solenidade. “Todos são bem-vindos. Esse é um convite para todo o mundo”, respondeu Freeman.
Mas as palavras de Freeman se contrapõem à realidade no país. O Catar é uma das nações que mais viola os direitos humanos no mundo e tem a LGBTI+fobia, a misoginia e o machismo como política de Estado – inclusive, levando mulheres e homossexuais à morte. Além disso, o jornal britânico The Guardian descobriu que 6,5 mil trabalhadores estrangeiros morreram desde que o país foi escolhido como sede do Mundial, devido às péssimas condições de trabalho nas obras de infraestrutura da Copa. Houve ainda denúncias de trabalhadores submetidos a discriminação, roubo de salários, violência verbal e física, entre outros abusos.
Portanto, o que assistimos naquele domingo foi uma clara demonstração de Diversity Washing – termo muito usado para falar de marcas que promovem ações de fachada envolvendo o tema da Diversidade e Inclusão. E, mais: estamos presenciando um grande exemplo do chamado Sportswashing – já ouviu falar?
Glória esportiva como cortina de fumaça
Esse termo cunhado pela Anistia Internacional em 2018 e, em português, a tradução seria “lavagem esportiva”, quando uma pessoa, grupos, corporações e, geralmente, governos usam o esporte para mascarar ações negativas, criando uma imagem positiva do país para o mundo. Nada mais é do que emprestar o prestígio do esporte para limpar a reputação e maquiar problemas como abusos de direitos humanos – ou um banho com água limpa para lavar manchas de sangue.
Trata-se de um dos raros casos em que o esporte (ou quem os patrocina) não serve de inspiração, mas de fonte de preocupação, indignação e vergonha.
Não deixa de ser o que acontece internamente no Brasil durante as Copas do Mundo. Afinal, essa costuma ser, para grande parte dos brasileiros, a distração “milagrosa” que promove uma pausa nas discussões políticas, sociais e econômicas e resgata o amor pela bandeira e o senso de pertencimento. O futebol, aliás, faz parte do nosso chamado soft power (conceito de Joseph Nye Jr., sobre quando o Estado promove valores culturais e políticos para exercer sua influência, sem a necessidade de impor a força militar) – e, sim, a Seleção canarinho é um dos nossos patrimônios culturais. Justamente por isso, as Copas costumam virar cortina de fumaça para a as mazelas do país.
O método foi bem explorado durante a nossa ditadura militar (o jingle da Copa de 70 inebriou o País) e também usado por outras nações ao longo da história: em 1936, por exemplo, as Olimpíadas de Berlim serviram como propaganda do regime nazista; já em 1978, a Copa da Argentina serviu aos militares como meio de receber apoio popular e esconder torturas e assassinatos cometidos pela ditadura argentina.
Como vemos, violar direitos humanos e distrair o povo com esporte não é uma exclusividade da nação catariana.
A grande questão aqui é que o Catar (que é dono do clube francês PSG e patrocina diversos times por meio da sua companhia aérea, Qatar Airways) viu na Copa do Mundo uma oportunidade de também criar uma marca positiva e moderna para seu país, sem precisar modernizar seu sistema de governo nem sua sociedade, e sem mexer nas suas (polêmicas) questões internas. E, assim, se sobressaiu em relação a outras monarquias árabes, como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, que investem há anos no futebol europeu. Todas essas nações acabam usando o futebol para lucrar alto (claro!), mas também como vitrine e soft power que alimentam suas relações com outros países e economias.
E, pelo jeito, a tática meramente marqueteira do Sportswashing funciona. Basta ver que a última Copa, organizada pela Rússia (outra nação bem controversa) atraiu 3,5 bilhões de espectadores em todo o planeta e contribuiu com 12,5 bilhões de euros (R$ 82,7 bi na cotação atual) à economia russa, número pouco acima de 1% de seu Produto Interno Bruto (PIB).
Nem todo mundo cai nessa…
A gestão de marcas por meio do esporte é um ótimo negócio, praticado há décadas por algumas das empresas mais famosas do mundo. Isso porque o esporte é capaz de evocar emoções positivas e poderosas, mesmo em que não é aficionado, como paixão, alegria, emotividade, orgulho, superação, patriotismo, entre outras. Assim, as marcas se beneficiam (como patrocinadoras) da conexão formada entre torcedores e atletas/equipes; e as nações também captam para si esses atributos positivos (como anfitriões de eventos), para melhorar sua popularidade e reputação.
E, para além dos ganhos de imagem, uma Copa do Mundo é capaz de trazer ganhos financeiros não apenas para o país-sede. No Brasil, por exemplo, a expectativa é de que o evento movimente cerca de R$ 1,4 bilhão no setor de comércio e serviços, de acordo com a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).
Mas é importante que as marcas entendam que os ganhos reputacionais obtidos durante um evento como esse podem não se sustentar caso as empresas sejam desmascaradas em ações negativas, envolvendo o modo como ela trata seus colaboradores e parceiros, a sociedade, o meio ambiente ou sua própria governança. Isso porque, no universo das marcas, os consumidores estão cada dia mais exigentes, sempre prontos a expor nas redes eventuais incoerências entre discurso e prática.
E, ainda que uma parcela generosa dos torcedores releve as violações cometidas pelo país- sede do evento esportivo, é justamente a parcela mais consciente dos consumidores, torcedores e formadores de opinião que estão expondo os danos do Sportswashing. Não à toa, a busca pelo termo no Google explodiu em 2022.
Nesse sentido, foi de extrema importância o posicionamento de artistas como Rod Stewart, Shakira e Dua Lipa, que se recusaram a cantar na abertura da Copa do Catar, e também de esportistas que realizaram protestos em campo, caso do centroavante inglês Harry Kane, que usou uma braçadeira com a frase “No Discrimination” durante a partida de estreia do time.
Se o objetivo do Catar era atrair as atenções do mundo para a cultura, arte e belezas do país, tendo os atributos positivos do esporte como pano de fundo, podemos dizer que o tiro saiu pela culatra. A exposição da pequena nação árabe tem provocado uma explosão de reportagens e posts negativos, algo um tanto inédito para um país que raramente sai nos noticiários globais. Esse fato tem frustrado a monarquia e o público local. Para eles, a cobertura da mídia ocidental parte de uma visão simplista e preconceituosa, que geraria uma imagem estereotipada e ultrapassada da população catariana.
No fim, Sportswashing nenhum consegue (re)construir reputações. Não há ação de fachada que se sustente em épocas de redes sociais – principalmente quando a marca (ou, no caso, o país) toma para si a responsabilidade de se tornar vitrine.